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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O Meu Quintal é o Mar (Reportagem Rádio Renascença)


Augusto Fonseca chega da pesca. Conseguiu um robalo. Em Esmoriz, estes meses frios em que as ondas não deixam os barcos sair de terra firme são tempo de pesca miúda. O chilreio dos canários amarelos e do melro Chiquinho ecoa pela marquise, onde há uma bicicleta, porque é de bicicleta que se percorrem as praias à procura do peixe, um emaranhado de cordas e redes, um aquário para as “bichas do mar” que servem de isco.

O robalo de hoje é uma amostra de peixe se comparado com a corvina de 33 quilos que apanhou há uns bons anos – um feito com direito a foto de grupo com o portentoso animal, do tamanho dos homens que o seguravam. “Deu-me uma sapatada.” A foto marca a data: 7 de Junho de 1983.


Não são raros os invernos em que o mar invade o bairro piscatório de Esmoriz

“Eu praticamente nasci no mar”, diz Augusto, 63 anos. Vive da pesca, como vivem quase todos os habitantes deste pequeno bairro de Esmoriz, a meia centena de metros das ondas, junto à Praia Velha. É, quase sempre, sítio de paz. Ouvem-se galinhas. Seca-se roupa e impermeáveis de ir ao mar. Dois cães bulham na estrada.

O mar é o vizinho, 365 dias por ano, mas não são raros os invernos em que ele se aproxima e as ondas em fúria galgam a muralha de rochas e entram pelas ruas, pelas casas. Nas marés vivas de Agosto, o mar também “vem fora”. “Há noites em que a gente não dorme”, conta a companheira, Maria, 55 anos.

Nem sempre foi assim. Tempos houve em que havia centenas de metros (alguns relatos falam em “quilómetros”) de areia e dunas a separá-los do mar. “Havia uma capela, aqui a 300 metros”. Hoje, o sítio está debaixo de água. “Em criança, jogava-se à bola, tínhamos dunas. E hoje o que é que temos? Não temos nada”, lamenta Augusto.

“O mar tem avançado sempre para cima de nós. Estamos a 50 metros do mar”, confirma Maria, mãe de nove filhos, a viver do pouco dinheiro da pesca e de 150 euros de pensão de sobrevivência. O mar nem precisa de subir para assustar: “Quando bate na pedra, a gente sente na cama. Baldeia como se fosse um tremor de terra.”



“Tirando Deus, a coisa mais poderosa é o mar. Deve ser o ser mais poderoso do mundo”, diz Augusto. Sentiu-o no corpo quando naufragou num barco a remo, “mais um senhor que tinha 17 filhos”.

Chove neste dia de Novembro, mas há quem ande de calções na Praia Velha. Tomás Nunes está sentado numa das milhares de pedras ali postas para travar o avanço do mar. De vez em quando, mexe na cana de pesca que espetou na areia, a ver se teve sorte. Tem 35 anos, olhos azuis claríssimos, camisola dos Super Dragões metida dentro do impermeável.

Tomás Nunes dedicou a vida ao mar.

Vive com a mãe na “casa mais perto do mar”. Mas receia, sobretudo, o que pode acontecer aos vizinhos: há um “buraco” por reparar na muralha de pedras. “Muita tonelada de pedra foi para o mar.”

No bairro, os sinais dos ataques do mar são evidentes. Vêem-se obras em várias casas. Emídio Silva vive a menos de 50 metros do oceano, numa barraca de madeira, construída numa vala abaixo do nível do estradão que acompanha a linha de costa.

As roupas amontoam-se no exterior, onde um sofá velho apanha chuva. Emídio vive com familiares e um “miserável” a quem deram guarida. Encontramo-lo a pregar pregos ferrugentos na barraca com a ajuda de um sobrinho, João Rodrigues.

Já houve anos em que o mar entrou pela vala e levou roupas, porcos e galinhas. Agora não se vê tanta bicharada. Poucas galinhas circulam numa casa desocupada ali ao lado, contornando madeiras e outros materiais deixados ao abandono. Galinhas e gatos disputam o território arruinado.

No ano passado, uma onda “deitou uma senhora ao chão” e “vieram os bombeiros”, conta João Rodrigues, de 32 anos. “Não foi dos anos piores. Houve um ano que foi pior, tivemos que sair das casas e ir para os hotéis”.



São tempos diferentes para um povo habituado a viver em relação com o mar e a praia. Ainda no século XX, muitos pescadores e lavradores viviam em palheiros de madeira, “assentes em pegões de granito para que as areias pudessem circular”, conta António Maria Ferreira da Silva, 78 anos, esmorizense que se dedica a escrever livros sobre a história da terra.

“Aqui o pescador vive em barracas de madeira que têm o aspecto de povoações lacustres”, escreveu Raul Brandão em “Os Pescadores” (1923). O escritor rendeu-se ao “espectáculo extraordinário” da pesca local, em que “o lavrador associa-se ao homem do mar”. “Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à água.”

António Maria Ferreira da Silva, licenciado em História, lembra-se de o mar estar “muito mais longe” quando era criança. Os palheiros tinham vantagens: “Quando o mar avançava, metiam-lhes umas traves por baixo e, com várias juntas de bois, conseguiam retirá-los mais cá para cima, para longe do mar.”


A erosão costeira está no topo das preocupações de Salvador Malheiro, esmorizense de 41 anos acabado de chegar à presidência da Câmara de Ovar. “O mar era muito longe. Tínhamos centenas de metros de areal até ao mar, tínhamos protecções naturais, dunas de uma beleza ímpar.”

O bairro dos pescadores não terá que ser engolido pelo mar, como temem alguns pescadores. Esta é uma “zona fixa”, desde que sejam feitas intervenções de fundo de “dez em dez anos”, defende Carlos Coelho, investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro.

Carlos Coelho e outros investigadores produziram um sistema que permite fazer previsões sobre como o mar avançará na costa da região de Aveiro. Há praias de Cortegaça e Maceda, vizinhas de Esmoriz, que podem desaparecer – o mar tende a avançar três metros por ano em zonas sem protecção longitudinal aderente (isto é, uma muralha de rochas).

“Se deixássemos de fazer manutenção [da protecção longitudinal], o mar engoliria” zonas como o bairro dos pescadores de Esmoriz, alerta Carlos Coelho. Com manutenção, as inundações poderão ser mais frequentes, mas o bairro pode manter-se. Mas no trecho de costa Cortegaça-Maceda, em 2040, se nada for feito, o mar pode roubar à terra cerca de 100 metros, prevê o CESAM.



O bairro piscatório de Esmoriz não é caso único em Portugal (as torres de Ofir, em Fão, Esposende, construídas numa duna, são outro exemplo, refere Carlos Coelho), mas é das situações “mais gravosas a nível mundial” no que toca à erosão costeira.

Manter estruturas e populações junto a uma zona de costa como esta exige um investimento constante – mas perder território para o mar também tem custos económicos, sobretudo para terras que apostam muito no turismo. “Há uma análise custo-benefício que tem que se fazer – e que não é nada fácil de se fazer”, reconhece.



O presidente da Câmara de Ovar concorda que “é preciso uma análise custo-benefício”. Mas não aceita “atirar a toalha ao chão”: “[Devemos] olhar para isto a médio e longo prazo e tentar resolver o problema de uma vez porque estou convencido de que podemos ganhar esta guerra contra o avanço do mar e não dar de barato desde já que teremos absolutamente de deslocalizar todos os aglomerados urbanos”. Algo que também teria “custos muito elevados”.

O problema maior é que falta areia, e esporões e obras longitudinais aderentes não trazem areia. Para Carlos Coelho, as principais causas do défice de areia são as barragens: na primeira metade do século XX, antes da construção dessas estruturas, o Douro levava para o mar um milhão e meio de metros cúbicos de areia por ano. Hoje, não leva “nem 10%” dessa areia.

“Já tivemos uma extensão de praia impressionante no município de Ovar e ainda tenho esperança de que isso volte a acontecer a médio prazo”, afirma Salvador Malheiro. “Na próxima década.”

Para lá chegar, o autarca do PSD defende a aplicação de “novas soluções técnicas”, como recifes artificiais e a reposição de areias, para as quais, diz, haverá financiamento comunitário. A tarefa é difícil: “o nosso mar tem uma força motriz impressionante”.

O que arrancará já em 2014 serão as obras de construção de 30 habitações para realojar famílias do bairro piscatório de Esmoriz. O projecto tem muitos anos, mas recebeu, em Novembro, luz verde do Tribunal de Contas para poder avançar. Malheiro espera que as casas – um investimento de 1,3 milhões de euros – possam estar prontas no primeiro semestre de 2015.

Muitos moradores não querem sair do bairro. E ninguém será obrigado a sair, garante o presidente da câmara. Um morador, que pede para não ser identificado, tem ali o seu “paraíso”, apesar dos “sustos”.



O mar faz parte do quotidiano do bairro. Maria Marques Oliveira, 63 anos, que chegou “pequenina ao bairro”, tem o oceano nas costas na casa. “A gente não tem medo do mar, tem medo é de doenças perigosas”, diz. Nem o som a assusta: “Não ouço mar nenhum”. Diz estar protegida por umas “moiteiras” de chorões, plantas que resistem ao salitre que corrói as casas e enferruja os automóveis.

“Nunca na minha vida ganhei um tostão que seja sem ser a trabalhar nesta vida”, conta Augusto Fonseca. O futuro bairro não lhe interessa: “Mais uns dias ou mais uns anos, também não saía agora do meu barraco para ir para lá.”

É terra de “muitos sustos”, mas pouca lamúria. Conta César Rocha, 25 anos, pescador: “Só num dia fomos duas vezes ao fundo”. Diz isto e ri-se. “Não há nada que tenha mais força do que o mar.”
 


                           
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MAGNÍFICA REPORTAGEM TEXTUAL E FOTOGRÁFICA DA RÁDIO RENASCENÇA - 2013. Veja-se: http://rr.sapo.pt/o-meu-quintal-e-o-mar/default.html.

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