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domingo, 29 de janeiro de 2017

Pérolas Históricas de Esmoriz II - Os segredos dos nossos Palheiros


"Tem que se sair de casa para melhor querê-la e apreciá-la; os que se encerram em casa é mais para molestar aos seus e por falta de valor para lutar com os de fora".


Miguel Unamuno
Romancista, poeta e filósofo espanhol
(1864-1936)


O padre Aires de Amorim, na sua monografia "Esmoriz e a sua História", conta-nos que foram vários os estudiosos de outrora que chamaram "palheiros de luxo" àqueles que jaziam nas praias de Esmoriz e Cortegaça. 
De acordo com aquele autor, os palheiros "eram feitos de madeira, assentes em estacaria, circulando, ou não, o vento por debaixo". Além disso, poderiam alguns, certamente mais abastados, conter linhas verticais ou horizontais de diversas cores (azul, vermelho, verde...), assumindo assim uma faceta mais decorativa. Estas habitações continham uma pequena escada exterior que dava acesso a um patamar, onde estaria presente a porta de entrada. No interior, apresentavam, muitas vezes, uma configuração totalmente humilde - uma divisão que servia tanto para cozinha como para dormitório, existindo apenas uma ou duas janelas. No entanto, e com o rápido crescimento do número de elementos do agregado familiar (a natalidade antigamente era bem mais elevada!), era possível a recriação de mais divisões interiores (com recurso a um tabique de pranchas), o que poderia provocar igualmente a ampliação do espaço.
Em redor dos palheiros, poderiam vigorar determinadas plantações, caso o terreno favorecesse tais práticas. No caso dos Palheiros da Costa Nova (em Ílhavo - Aveiro), sabemos que existiam pequenos quintais destinados à produção de batatas, cebolas, alhos e couves. Normalmente, este papel seria reservado às mulheres, visto que os homens se aventuravam no alto mar ou até na Barrinha.
A madeira dos palheiros provinha muitas vezes dos pinheiros que ajudavam a fixar as dunas. Os moradores utilizavam ainda o sal como meio de defesa contra a bicharada que tentasse atingir a estacaria de suporte da habitação.
Estas estruturas primitivas davam assim guarida aos nossos "lobos do mar" que se lançavam no alto mar para capturar o tão desejado alimento (peixe) procurado pela comunidade. Além disso, os palheiros assumiriam uma segunda função - armazenar, no rés-do-chão, os apetrechos piscatórios (alfaias, redes, pequenos barcos, canas de pesca, etc.).





Imagem nº 1 - O  célebre Palheiro Amarelo, talvez o edifício tradicional mais carismático situado junto à Praia de Esmoriz. Como se poderá visionar, este palheiro também fora utilizado, no passado, para "abrigar" alguns materiais piscatórios.
Cartoon da autoria de Marco Joel Santos




A origem da construção destas habitações está envolta num grande manto de dúvidas. Não há uma data concreta para o seu aparecimento nas faixas litorais norte e centro. Sabemos sim que, a 29 de Janeiro de 1854, surgiria a primeira licença oficial para a construção de palheiros em Esmoriz. Mais de uma década depois, em 1868, a Câmara Municipal da Feira (à qual pertencia então a aldeia de Esmoriz) incumbiu o juiz eleito de Esmoriz de intimar todos os donos que haviam sido responsáveis pelo surgimento de construções então clandestinas (isto é, erguidas sem a dita licença) para que procedessem à sua demolição imediata. Em 1874, a nossa praia era já muito procurada pelos banhistas, e até as fotografias mais antigas, tendem a inferir uma era dourada dos palheiros em Esmoriz, estabelecida cronologicamente entre os finais do século XIX e a primeira metade do século XX.
Exposto isto, podemos ter, pelo menos, a certeza de que já existiriam palheiros em Esmoriz no século XIX, durante os tempos da Monarquia Constitucional. No entanto, é bem provável que estas habitações sejam ainda bem mais antigas porque, desde cedo, simbolizaram a relação íntima que o homem mantivera com o mar, facto que foi, por exemplo, parte integrante do desenvolvimento económico e social da nossa terra.





Imagem nº 2 - A Festa em honra do Nosso Senhor dos Aflitos e de Nossa Senhora da Boa Viagem em 1907. Destaque para a presença de vários palheiros "estacionados" na Praia de Esmoriz.
Galeria de Imagens - "Esmoriz Antigo" (Joaquim Fernando Reis)




Imagem nº 3 - Dois palheiros de formato distinto, lado a lado, em 1908.
Galeria de Imagens - "Esmoriz Antigo" (Joaquim Fernando Reis)





Imagem nº 4 - Linha de palheiros cuja construção foi ordenada pelas autoridades marítimas em 1942.
Galeria de Imagens - "Esmoriz Antigo" (Joaquim Fernando Reis)




Declínio e Realidade Actual


Em 1793, surge a primeira construção moderna, de pedra e cal, que viria a pertencer à família de Romão José da Silva Varela Souto Mayor, oriunda de São João de Ver. Em 1907, surge uma segunda construção daquela natureza. E de facto, o século XX irá testemunhar gradualmente uma avalanche de edifícios modernos que irão extinguir gradualmente a hegemonia dos palheiros na Praia de Esmoriz. Chegaremos ao ponto de ter prédios e grandes construções que, do ponto de vista histórico, nunca fizeram sentido. A zona à beira-mar sofreu uma revolução, sem obedecer a qualquer padrão organizativo, que comprometeu a identidade até então vigente.
O fim dos palheiros não se deveu somente à expansão do urbanismo e dos arquétipos recentes da arquitectura, mas também encontra eco na ameaça do avanço marítimo que tratou de reduzir o nosso areal ao longo dos tempos. Aliás, os palheiros sempre foram construções frágeis e pouco resistentes às ameaças de pendor natural.
Se há cerca de um século atrás, existiriam cerca de 50 palheiros (ou até mais) na nossa praia, hoje sobrarão apenas seis ou sete, e metade desses, encontram-se seriamente degradados, pelo que esta herança única do passado poderá estar hoje em vias de desaparecimento, se ninguém reagir a tempo.
Se em Aveiro, os palheiros conseguem captar alguma dimensão turística junto à ria, o mesmo não podemos aferir em relação a Esmoriz. Seria altura de repensar a estratégia, e nada melhor que recuperar a afirmação célebre do escritor espanhol Miguel Unamunu que citamos em cima. Da mesma forma que os nossos pescadores arriscaram as suas vidas no mar para "matar" a fome aos seus familiares, também é altura de salvaguardarmos este património, digno de ser contemplado pela sua fachada exterior singular. Até porque o povo de Esmoriz, virtus in labore, o merece, mais do que ninguém, visto que batalhou contra todas as adversidades que se lhe depararam! Os palheiros são testemunhos dessa luta, muitas vezes, desigual e inglória, perante um mar que tudo poderia oferecer, mas que também exigiria, em dias mais revoltos, o sacrifício de mártires inocentes que apenas procuravam garantir humildemente o seu sustento!





Imagem nº 5 - Dois palheiros, minimamente bem conservados, localizados junto à actual Capela da Praia em Esmoriz.
Foto da autoria de Carlos Alexandre





Imagem nº 6 - Postal que exibe dois palheiros na praia de Esmoriz.
Autor - José Bastos

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