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terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Entrevistas Com Memória III

O nome Maria Alice Dias da Silva não diz nada a muita gente, mas toda (ou quase toda a gente) das redondezas conhece a "Alice das Fêveras". A esmorizense começou o seu negócio em 1963 e, durante cerca de 50 anos, recebeu no seu estabelecimento comercial pessoas de muitas terras vizinhas e não só. A razão do sucesso: tratar toda a gente como se fosse família.

Entrevista da autoria de Agostinho Fardilha
Jornal A Voz de Esmoriz, Edição de 21 de Agosto de 2015



Como é que surgiu este nome Alice das Fêveras?

Quando eu me casei, tinha a minha loja em casa do senhor Agostinho Valente. Passados dois anos, a família quis a casa e eu mudei-me para o armazém em frente do senhor Manuel Valente, fiz obras e fui para lá. Inicialmente, o meu negócio era uma taberna onde se vendiam uns copos e umas sandes e também tinha uma pequena parte de mercearia. Quando eu me mudei para o lado de cima, o armazém era maior e eu comecei a alargar mais o negócio. Aquela era a zona dos tanoeiros... O senhor Fernando Pacheco ia lá e eu dizia-lhe para levar lá os seus clientes. O mesmo aconteceu com outras pessoas. Passado um tempo, já vinha gente da Arrifana, de Paços de Brandão... Eu não comecei com as febras, eram mais as enguias e caldeiradas de enguias.


Havia outros petiscos?

Sim, havia. Depois comecei também a fazer almoços, etc. Eu tinha uns fogareiros normais de casa onde assava, mas era mais à base de fritos. Os meus primos iam lá fazer as merendas com os colegas da caça e diziam que não tinha jeito, que aqueles fogareiros não davam rendimento. Assim, adaptaram um bidão grande para eu assar e disseram para eu o colocar junto à estrada, que assim quem passava por ali via...  Vinha gente de todo o lado, uns chamavam os outros. Mais tarde, comecei a servir fêveras e bacalhau, assados na rua. Alguns clientes queriam comer e eles próprios assavam a sua comida no fogareiro. Nunca trabalhei com empregados, foi sempre com os meus cunhados, Quim e Valdemar, e o meu irmão Zé. Estive lá na rua Guerra Junqueiro oito anos.


Em que ano começou?

Comecei em 1963. Passados dez anos, vim para casa porque o meu marido estava muito mal. Ainda estive dois anos sem abrir negócio, mas tinha o meu nome feito e muitas pessoas diziam que queriam ir à Alice das Fêveras. Os amigos do meu marido vinham visitá-lo e começaram a dizer que faziam em minha casa as merendas... Fizemos umas mesas ambulantes para colocar no quintal e assim recomeçou. Fiz mais negócio aqui que na loja que deixei ficar. Chegou a uma altura que tive que ir falar com o Adelino Alves por causa do terreno em frente à minha casa para aumentar o negócio. Eu abri este negócio em casa em Fevereiro de 1973 e, em Agosto desse ano, fiquei viúva. Nessa altura, chamei os meus irmãos e cunhados para conversarmos. Eu dizia que não ia abrir, porque isto ficava aqui num canto...


De facto... Como é que uma casa aqui neste sítio cresceu com esta força?

A minha casa foi sempre muito familiar. Às vezes, o meu trabalho era tanto que eu dizia aos clientes que, se quisessem comer, tinham que levantar as mesas, tinham que se desenrascar. O que ajudou a criar essa casa foi essa familiaridade. As pessoas de Paços de Brandão e Arrifana vinham para Esmoriz fazer praia e as famílias chegavam aqui à meia-hora para preparar, às vezes, o próprio almoço. Tinha clientes que, na altura em que o meu marido estava no hospital, vinham abrir-me a porta e estavam ali até eu chegar do comboio. E assim comecei e assim estou. 


Já alargou o estabelecimento mais do que uma vez!

Sim, a primeira vez, só fiz o pavilhão de cima, depois fiz o armazém de baixo. As alterações foram acontecendo, porque a casa foi ficando sucessivamente mais pequena. Eu era para fazer mais outro pavilhão, mas as coisas não andaram como eu queria... Há cerca de 20 anos, passei o negócio pela primeira vez. Deixei parte de mim lá dentro, mas tive muita sorte. A primeira passagem foi para o meu cunhado Valdemar e para as filhas, tinha quem me desse mais, mas era família e estava à vontade. Depois esteve o Alípio Canelas durante dois anos, mas só foi para eu descansar... Agora estão lá outras pessoas e parecem ter dado conta do recado, a clientela não falta. Eu disse-lhes para não tirarem o meu nome de lá...


Tem alguma ideia da projecção que este nome tem para a cidade de Esmoriz? 

Sim. Este recanto já é conhecido mundialmente... Eu tenho pessoas do Brasil, França, turistas que estão no campismo e vinham cá comer. Mas as condições da rua... Aos da Junta de Freguesia, eu pedia para tapar uns buracos, mas dizem que não é competência deles, que não têm verbas. Também pedi ao presidente da Câmara que não se esquecesse de nós. De inverno, de vez em quando, é preciso andar de galochas, o saneamento está uma vergonha, a água levanta as caixas e entra pelas casas. Deviam ter um pouco de consideração por este lugar. O presidente da autarquia é de Esmoriz, conhece bem a casa... É uma pena. Quando eu estava aqui, havia um terreno para estacionamento, agora os carros ficam pela estrada fora, as pessoas vêm a pé, mas a estrada tem muitos buracos e ficam com os pés molhados. Os clientes dizem que é pena ter uma estrada assim, deviam fazer algo para oferecer melhores condições.


O facto de se ter conseguido esta projecção é benéfico para a própria cidade? As pessoas falam da Alice das Fêveras quase como uma marca, é quase tão conhecida como a Cordex ou a Bi-Silque...

Eu fazia a minha casa quase só com pessoas de fora de Esmoriz. As pessoas até poderiam ir para outros restaurantes, mas não se sentiam tão à vontade. Aqui, faziam-se reuniões de colectividades, de futebol, de amigos. Na altura das férias, os patrões pagavam merendas aos funcionários, os viajantes também se encontravam aqui... Sinto-me orgulhosa, não é por ganhar dinheiro, mas porque fui sempre humilde. Os clientes eram mais do que clientes, ficavam quase pessoas de família. O que é isto à beira de um restaurante? Vinha e continuava a vir cá gente que podia estar em bons restaurantes, mas eles queriam coisas caseiras, como foram criados, estavam à vontade...


O que pensa sobre o que poderá acontecer a uma casa como esta? Quais são os seus desejos para o estabelecimento?

Não tenho direito de pedir, mas acho que, para mim, era um orgulho continuar com o mesmo nome. Se mudar o nome, não sei se o negócio continua... As pessoas não sabem onde será... O nome chega e sobra para identificar. Quando chegou a passagem de nível, isto ainda ficou mais num canto, as pessoas não sabiam onde era, mas arranjaram solução para cá chegarem.



Entrevista retirada de: Jornal A Voz de Esmoriz. Ano 58, Nº 1121. Dir. Lília Marques. Comissão de Melhoramentos de Esmoriz, Edição de 21 de Agosto de 2015. Reportagem conduzida por Agostinho Fardilha, págs. 8-9.





Imagem nº 1 - Alice Silva criou uma marca forte na restauração local.
Direitos da Foto - Comissão de Melhoramentos de Esmoriz




Imagem nº 2 - Agostinho Fardilha assegurou a condução da entrevista.
Direitos da Foto - Comissão de Melhoramentos de Esmoriz



Nota-Extra: A rubrica "Entrevistas com Memória" foi criada pelo nosso blogue em 2017. Na altura tínhamos prometido aos nossos leitores (re)publicar entrevistas antigas (pelo menos, que tivesse um ano ou mais de antiguidade) em torno de pessoas que marcaram a vida da nossa cidade. Infelizmente, e apesar de termos publicado, na altura, entrevistas então realizadas aos poetas António Maria e Susana Cruz, a verdade é que deixámos esta rubrica cair no esquecimento (muito devido a motivos laborais que, na altura, nos fizeram retirar tempo para esse efeito), perdendo assim o carácter mensal que pretendíamos imprimir na altura. É com agrado que anunciamos que esta será uma das surpresas que prometemos reservar para 2019, altura em que o blogue comemora 7 anos de existência. Por isso, em breve, iremos partilhar convosco mais entrevistas antigas que sejam relevantes para o interesse público da comunidade. 

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