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sábado, 12 de janeiro de 2019

Pro Meritis Civitatem I

Nota-introdutória: Como forma de assinalarmos a redacção do texto nº 3000 (estatística que alcançamos agora com este novo artigo), iremos estrear uma rubrica mensal que irá perdurar até ao final do ano que agora principiou. A rubrica "Pro Meritis Civitatem" será a prenda que pretendemos oferecer aos nossos leitores, naquele que será o sétimo ano de existência deste blogue. Esta iniciativa pretenderá desenterrar notícias e acontecimentos do passado que marcaram, de forma meritória ou benéfica, a evolução da nossa cidade. Ligeiramente diferente da rubrica "Pérolas Históricas de Esmoriz", este novo projecto irá basear-se em factos noticiosos dos últimos dois séculos, inspirando-se em informações da imprensa, livros ou revistas que façam a alusão a assuntos que marcaram a história da cidade e das suas gentes.



Pro Meritis Civitatem I

O Nascimento Humilde de um Clube-Embaixador da Cidade


"Pequenas oportunidades são muitas vezes o começo de grandes empreendimentos"


Demóstenes
Orador e Político de Atenas
(384 a.C. - 322 a.C.)



1. O Fervor Futebolístico chega à Aldeia, o Clube nasce


O futebol foi uma invenção dos ingleses no século XIX, tendo conhecido uma evolução determinante com a aplicação de novas regras. A sua introdução em Portugal terá ocorrido algum tempo depois, repercutindo-se primeiro nas grandes cidades e depois nos meios mais afastados. 
As raízes do futebol em Esmoriz não remontam, ao contrário do que muitos julgam, a 1932, ano em que é oficialmente fundado o Sporting Clube de Esmoriz. Já antes dessa data, ou melhor, desde o início do século XX, que se praticava algum futebol na aldeia, embora sempre numa configuração amadora e simbólica. Gentes humildes participavam assim em partidas amigáveis com outras "equipas" que representavam terras vizinhas (Cortegaça, Rio Meão, Maceda ou Paços de Brandão). Na história que redigiu sobre o clube, Agostinho Fardilha classifica esta etapa como a "Pré-História do nosso Futebol Local", isto é, que antecedeu o surgimento oficial do clube. No seu entender, a primeira bola oficial a chegar à nossa localidade terá sido estreada inclusivamente nos anos finais do século XIX, fazendo juntar grupos de amigos. No entanto, neste período muito recuado, a prática futebolística ainda carecia de regras (em muitas ocasiões, nem sequer havia árbitros), e muitos dos jogadores eram seleccionados à "saída da missa". Como Agostinho Fardilha realça: "bastava um simples espaço disponível, uns paus ou umas pedras para servir de balizas e... o empenho dos contendores". O futebol era assim vivido na base da sua essência apaixonante, e favorecia todo um convívio social. No caso de jogos de rivalidade com grupos de rapazes de terras vizinhas, o público vivia as incidências de uma forma muito aguerrida e agitada (o bairrismo estava muito presente nestas partidas), não faltando gritos, apupos e provocações. Chegavam até a ocorrer arremessos de pedras, rapilhos e outros materiais. Nessa altura os jogos "amigáveis" ou "menos-amigáveis" teriam decorrido em Esmoriz nos campos junto à Barrinha, ou então nas imediações do apeadeiro de Esmoriz e do lugar da Marinha. 
Os nascimentos da Federação Portuguesa de Futebol em 1914 e da Associação de Futebol de Aveiro em 1924 fez com que fosse necessário estabelecer toda uma regulamentação que favorecesse a estruturação e reorganização condigna do novo desporto.
De modo a obedecer às tendências de modernização e a participar em competições oficiais, a comunidade rural de Esmoriz decide dar um salto importante: a associação desportiva do Sporting Clube de Esmoriz seria oficialmente fundada em 26 de Junho de 1932. Os seus mentores alegavam que era necessário iniciar um novo ciclo, de forma a satisfazer as necessidades de uma sociedade que começava a despertar seriamente para a prática generalizada do futebol como desporto-rei no nosso país e em grande parte das nações europeias. Criaram-se assim, nos anos seguintes, os primeiros estatutos, o emblema, o estandarte e, em breve, seria construído o primeiro campo oficial do clube. Esmoriz era ainda na altura uma aldeia com 2 ou 3 mil habitantes, vivendo em grande parte da agricultura, pesca, tanoaria e cordoaria. Uma pequena terra predispunha-se assim a abraçar a saudosa "bola de couro" que preconizava a introdução de um desporto moderno.  
O Sporting Clube de Esmoriz estreou-se nos campeonatos amadores/distritais em 1932/33, apresentando os seguintes jogadores: Amadeu (Fardilha), Rochinha, Zé das Micas, Neca Sapateiro, Paulino, Luís do Chefe, Humberto Ramos, Neca Ramos, Faustino, Virgílio e Jales. Doravante, já não haverá somente o carácter lúdico de uma prática desportiva, agora o clube encontra-se integrado em novas competições (deixam de existir "jogos a feijões"), alinhando contra novos clubes do distrito de Aveiro (todos os anos, apareciam, e desapareciam, novas equipas). Na década de 1930, muitos dos trajectos para os jogos são feitos a pé. Às vezes, tinham de ser calcorreados 4, 5, 6 ou até 10 km. Além das terras vizinhas (Cortegaça, Maceda, Rio Meão, Paços de Brandão, Silvalde), o Sporting Clube de Esmoriz teria que se deslocar a localidades mais distantes tais como Lamas, Sanfins, Bustelo, Oleiros, Guetim, São João de Madeira, Cucujães, Santa Maria da Feira, etc. É possível que, nas deslocações mais distanciadas, alguns beneméritos ou sócios activos acabassem por disponibilizar meios de transporte para facilitar a participação do Sporting Clube de Esmoriz nesses desafios. Mas a ausência de condições poderia levar também à desistência das competições, como veremos mais à frente. 
A sede do clube, nos primeiros tempos, vaguearia por várias casas, dependendo assim da boa vontade dos senhorios. A realidade institucional do clube não será fácil nos primeiros tempos, mas o clube acabará por aderir a uma organização própria. E de acordo com Agostinho Fardilha, duas ou três personalidades prestarão um contributo essencial nesse sentido, mas já lá iremos!




Imagem nº 1 - A primeira equipa oficial do Sporting Clube de Esmoriz na época de 1932/1933.
Direitos da Imagem: Suplemento "Aniversários Muito Especiais" (Jornal "A Voz de Esmoriz", 2007).





2- O Campo da Cruz

O clube precisava de definir um campo de futebol próprio. Não poderia ter recintos variados, caracterizados ainda por condições medíocres ou toscamente improvisadas, para a realização das partidas. Dentro deste contexto, começará, algures em 1933, a empreitada de criação de um novo campo de futebol. Tratar-se-à do Campo de Futebol da Cruz, o qual virá a ser o primeiro palco emblemático da instituição desportiva. A sua inauguração, ocorrida a 22 de Julho de 1934, chamaria a atenção dos jornalistas d' "O Comércio do Porto" e da revista "Stadium" que relataram a presença de uma enorme multidão e de alguns protagonistas da altura de âmbito local ou regional (destaque para a presença do Governador Civil de Aveiro, o qual se sentiu honrado na recepção que lhe foi prestada). Ao todo, terão estado mais de 3 mil pessoas a assistir à inauguração do Campo da Cruz. Clubes como o Esmoriz, o Rio Meão, o Paços de Brandão e o Maceda apadrinharam o novo palco futebolístico através de dois jogos (Esmoriz vs Paços de Brandão 4-0; Rio Meão vs Maceda 0-1) que visaram a atribuição de duas pequenas taças. Por seu turno, o "Orfeão de Esmoriz" (era a sua estreia pública),  os "Bombeiros de Esmoriz", o "Corpo Cénico do Orfeão de Valadares" e a "Banda União Paramense" assumiram a animação artística e musical neste evento de inauguração do novo campo. Mas a festa não se ficou por aqui: o Capitão Oliva Teles (posto que assumia no Campo de Aviação de Espinho) pilotou um pequeno aeroplano, sobrevoando-o algumas vezes sobre o campo, tendo o mesmo lançado dali vários prospectos que anunciavam as boas vindas do povo de Esmoriz a todas as personalidades ilustres então presentes no recinto.
Além do campo, havia uma bancada simples com capacidade para albergar devidamente as elites locais ou regionais. O Sporting Clube de Esmoriz salvaguardaria a si a prática deste desporto nos próximos tempos, fazendo florescer tais actividades no decurso da década em questão. A criação do primeiro verdadeiro campo de futebol em Esmoriz foi uma vitória para um povo com baixos índices de alfabetização e que vivia ainda absorvido por uma economia local rudimentar. 
Ainda em 1934, mais concretamente em Setembro, seriam aprovados os primeiros estatutos do clube, instrumento institucional que serviria de guião para os caminhos a seguir no futuro. 
No entanto, a temporada de 1933/34 não corre bem à equipa esmorizense que acaba por desistir no início da Segunda Volta da Divisão de Promoção da Zona Norte do Distrito de Aveiro.
Mas o azar e as dificuldades não duram para sempre, se o sentido de persistência e de empenho permanecerem como pedras basilares do dirigismo. Dois anos depois, na temporada de 1935/1936, a equipa alcançaria o primeiro grande êxito, ao sagrar-se campeã da Zona Norte - Promoção Distrital de Aveiro, tendo somado 39 pontos e batendo a concorrência próxima da Associação Desportiva Guetinense, Lusitânia Football Club e Sporting Clube de Rio Meão que ficaram no 2º, 3º e 4º postos respectivamente, todos eles com 37 pontos somados (isto é, a dois pontos do campeão - o SC Esmoriz). O primeiro título aconteceria na sua quarta temporada após a fundação ocorrida em 1932.





Imagem nº 2 - Fotografias antigas que comprovam a festa em redor da inauguração do Campo de Futebol da Cruz em 1934, a primeira casa do Sporting Clube de Esmoriz.
Direitos: FARDILHA, Agostinho - Sporting Clube de Esmoriz: A sua vida, a sua história (75 anos), 2007





Imagem nº 3 - O primeiro título do Sporting Clube de Esmoriz em 1935/1936. A equipa sagrou-se vencedora da zona norte do Distrito de Aveiro (Promoção) após uma contenda muito renhida.
Direitos: FARDILHA, Agostinho - Sporting Clube de Esmoriz: A sua vida, a sua história (75 anos), 2007




Os Mentores da Orgânica Inicial do Clube

O Sporting Clube de Esmoriz cresceu muito graças ao apoio popular local e à inter-ajuda própria entre as colectividades existentes na altura. No entanto, seria injusto não mencionar os nomes de algumas personalidades que congregaram esforços no sentido de assegurar que a criação deste clube não redundaria numa duração insignificante ou efémera, cenário indesejável que, na altura, "vitimou" muitas outras equipas. Houve, de facto, homens que possibilitaram ao clube dispor das ferramentas necessárias como um meio lógico de preparação para as adversidades do futuro.
O Professor Manuel Emílio Lopes Araújo (1901-1961), natural de Penalva do Castelo, seria o autor do emblema, da bandeira e dos estatutos do clube lavrados em 1934. Sempre disponível para ajudar a associação desportiva, Manuel Araújo leccionou em Esmoriz por duas décadas, e ainda colaboraria na fundação dos Bombeiros Voluntários de Esmoriz (1931) e na criação do Orfeão de Esmoriz (1934). Enérgico, profissional, dinâmico, perfeccionista e exigente, assim o caracteriza Agostinho Fardilha na sua obra alusiva à história do clube.
Não menos importante, Joaquim Oliveira e Silva (1904-1972), natural de Esgueira, tem hoje o seu nome bastante bem vincado na toponímia local, dado que a avenida onde se encontra o Monumento consagrado à Arte Xávega, no lugar da Praia, foi baptizada com o seu nome. Tal como a personalidade anterior, Joaquim Silva foi uma das personalidades mais influentes da história de Esmoriz durante a primeira metade do século XX, e até ainda no decurso das décadas de 50 e 60. Foi presidente do clube durante os anos 30, viria a ser posteriormente um dos mais memoráveis presidentes de Junta de Freguesia de Esmoriz (representou a terra durante largos anos, desde 1951 até 1964, segundo a monografia de Aires de Amorim) e tornou-se num autêntico dinamizador do espírito bairrista e da cultura local, além de ter sido um verdadeiro "líder-guerreiro" que, apesar dos poucos recursos disponíveis, lutou como podia para introduzir melhoramentos na localidade. Joaquim Oliveira e Silva foi um dos principais mentores da construção do Campo de Futebol da Cruz, impulsionou e subscreveu igualmente os estatutos do clube e nunca deixou, mesmo depois de ter deixado a liderança da instituição desportiva, de manter a sua militância. Joaquim Oliveira e Silva seria um dos responsáveis pela elevação de Esmoriz a vila a 29 de Março de 1955 (isto é, no decurso de um dos seus mandatos enquanto presidente da Junta) e apoiaria também a fundação da célebre "Malta Cigana" (na altura, constituída pelas personalidades mais promissoras e dinâmicas da terra) e da Comissão de Melhoramentos de Esmoriz, ainda na década de 50.
Uma terceira pessoa que reivindica alguma relevância quanto ao seu papel desempenhado na prossecução do projecto do novo recinto desportivo do Campo da Cruz foi, sem dúvida, o industrial António Ferreira Alves. Este cedeu materiais e os meios necessários para que o sonho então ambicionado se tornasse numa realidade. A sua filha Olinda seria mesmo escolhida como madrinha do novo complexo desportivo, aquando da sua inauguração.
Decerto que outras individualidades, embora com um papel mais secundário ou discreto, também prestaram o seu próprio contributo, mas não há dúvidas de que o nascimento do Sporting Clube de Esmoriz foi impulsionado por personalidades que desempenharam um papel notável no associativismo local e que também abraçaram a paixão do futebol, além de outras vocações. Sem a sua visão, o Sporting Clube de Esmoriz talvez teria sucumbido rapidamente e não chegaria aos dias de hoje (tal como acontecera como muitos outros clubes que chegaram a competir nas décadas de 30 ou de 40 - foi o caso, por exemplo, do União Desportiva de Maceda que inaugurou o Campo do Salgueiral diante até do próprio Sporting Clube de Esmoriz em 1935, mas que hoje já não existe enquanto clube desportivo), até porque as dificuldades e as crises ao longo do trajecto seriam naturalmente muitas.
Mas tudo foi bem preparado, dentro dos possíveis, para que o clube servisse toda uma comunidade que poderia assim desfrutar e representar as cores da sua terra, depois de uma semana dura de trabalho. O futebol também poderia ser violento e duro naqueles tempos, mas transmitia, muitas vezes, sentimentos de prazer, adrenalina e diversão. E um povo laborioso como o de Esmoriz também quis acompanhar as tendências do novo desporto-rei que, além de tudo, permitiu todo um estreitar do próprio convívio social. Fizeram-se novas amizades, demos a conhecer a nossa terra aos adversários da região que cá nos visitavam para jogar à bola, e o futebol começou a ter um impacto social, cultural e económico numa aldeia que desejava crescer muito nas próximas décadas.





Imagem nº 5 - Pequena descrição biográfica do Professor Manuel Lopes Araújo (1901-1961), um dos impulsionadores do Sporting Clube de Esmoriz.
Direitos: FARDILHA, Agostinho - Sporting Clube de Esmoriz: A sua vida, a sua história (75 anos), 2007




Imagem nº 6 - Pequena descrição biográfica de Joaquim Oliveira e Silva (1904-1972), um dos impulsionadores do Sporting Clube de Esmoriz e da própria localidade de Esmoriz.
Direitos: FARDILHA, Agostinho - Sporting Clube de Esmoriz: A sua vida, a sua história (75 anos), 2007


Referências Consultadas:

  • FARDILHA, Agostinho - Sporting Clube de Esmoriz: A sua vida, a sua história (75 anos). Esmoriz: Empresa Gráfica de Paramos, 2007. (Excelente obra que narra os momentos mais marcantes e curiosos da história do clube).
  • Direitos da Imagem: Suplemento "Aniversários Muito Especiais" in Jornal "A Voz de Esmoriz". Esmoriz: Comissão de Melhoramentos de Esmoriz, 2007.
  • AMORIM, Aires de - Esmoriz e a sua História. Esmoriz: Edição da Comissão de Melhoramentos, 1986.

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