domingo, 16 de agosto de 2020

Pérolas Históricas XX - A lenda do nome do Lugar da Boavista

 

Para suportar a sua própria história, cada um acrescenta-lhe um pouco de lenda.


Marcel Jouhandeau
Romancista e Novelista Francês
(1888-1979)


Em Esmoriz, existe um lugar que é designado de Boavista. Chamam-no assim porque está numa posição a nascente, numa ligeira inclinação topográfica, a qual permite aos seus moradores observar de longe a Barrinha de Esmoriz e o mar. Daí o nome de Boavista, por permitir vários miradouros de excelência. Naquele lugar, seriam oriundos dois grandes esmorizenses que deram cartas nas letras: António Maria (poeta e historiador) e Aires de Amorim (padre e autor da monografia de Esmoriz). Também a Nossa Senhora Capela da Penha é o principal cartão de visita do lugar, sendo um dos templos mais antigos de Esmoriz e até do concelho de Ovar.
No entanto, se, por um lado, sabemos como nasceu o nome deste lugar (isto é, o que levou à sua designação toponímica), por outro, desconhecemos quando isso começou.
Para esse efeito, nasceu inclusivamente uma lenda que tende a reivindicar as origens antigas do nome deste sítio. Foi, por exemplo, citada num projecto escolar bastante interessante desenvolvido por alunos e que já foi inclusivamente divulgada por alguns anciãos da terra:


"Os cruzados, guerreiros cristãos, oriundos do Norte da Europa, por aqui passaram, via terrestre e marítima, dirigindo-se do Porto a Lisboa, a caminho da Terra Santa. Certo é que alguns, por razões estratégicas e de observação e até de saúde, neste local de Boa Vista demoraram, dada a sua excepcional elevação e visibilidade para controlo das vias marítimas e terrestres e mesmo da Barrinha que nessa altura dava a acesso a navios. Decorria o reinado de D. Afonso Henriques. Neste local de eleição, pois a Capelinha da Penha, confinada de início apenas à actual sacristia do Norte, que ainda conversa o lagedo e janela seteira primitivos. E porque nessas hostes predominavam gauleses, compreensivamente lhe deram um título de origem francesa: Nossa Senhora da Penha. E o local continuou sentinela vigilante através dos tempos, pois de ali se alertavam as populações contra as incursões dos piratas e de "moiros na costa". Em 1345, conforme inscrição absolutamente legível, no cimo da portada frontal da capela, foi-lhe acrescentado o restante edifício para construir o templo que é de admitir seria a primeira Igreja de Esmoriz. E no período das Descobertas, os esmorizenses prometeram e levaram a cabo o mais rico e artístico altar em talha renascença que há por aqui, com um conjunto de imagens de incalculável valor. É este conjunto de requinte que mais caracteriza a vetusta e ridente Capelinha." (Projecto Escolar desenvolvido por professores e alunos na Escola Florbela Espanca entre 2005/2006).


Em primeiro lugar, esta lenda tem algum fundo de veracidade, embora não seja de todo confiável porque há imprecisões.
Começando por aquilo que achamos ser credível ou verdadeiro, sabemos efectivamente, em primeiro lugar, que os cruzados estiveram em contacto com a região litoral portuguesa (nos limites até então dominados pelo reino) no âmbito da Segunda Cruzada (1147-1149). Efectivamente, a queda de Edessa (1144), estado cruzado do Oriente, obrigou o Papa Eugénio III e o pregador Bernardo de Claraval a promoverem uma nova expedição militar à Terra Santa, de forma a proteger as conquistas da Primeira Cruzada (1095-1099). Ao longo da jornada marítima, vários navios cruzados oriundos do Norte da Europa, acabaram por naturalmente percorrer a costa litoral galega e portuguesa, e foi aí que o nosso rei D. Afonso Henriques procurou entrar em contacto, através de intermediários, com muitos dos seus capitães e líderes de forma a visar a conquista da cidade de Lisboa, o que veio a suceder-se então no ano de 1147, conferindo um novo impulso à Reconquista Portuguesa. Muitos destes cruzados estrangeiros eram normandos, ingleses, flamengos (Flandres), escoceses e germanos. Como é lógico, o primeiro grande ponto de contacto deu-se no Porto com o bispo local D. Pedro Pitões, sendo que posteriormente os cruzados avançariam pelo litoral até Lisboa, onde já estaria o soberano português acampado nas imediações para dar início ao cerco. Ao longo deste percurso marítimo, é provável que os cruzados fizessem algumas paragens para se reabastecerem ou descansarem. O cronista e cruzado inglês Osberno que relatou esta empresa bélica dá-nos a entender que tal se sucedeu, embora não tenha elencado o nome de muitos dos lugares onde se verificaram tais paragens. 
De acordo com a lenda, também é verdade que a Barrinha de Esmoriz tinha dimensões superiores àquelas que hoje conhecemos. Suspeita-se que, no século X, estendia-se desde Silvalde até Cortegaça, com a sua mancha lagunar a concentrar-se essencialmente entre Esmoriz e Paramos. O seu caudal era infinitamente mais expressivo. Por isso, estavam reunidas condições para que pequenas e médias embarcações navegassem no seu leito, dois séculos depois. 
As inquirições de D. Dinis (1288) também confirmam a presença de um porto medieval que permitiria a ancoragem de barcos. No entanto, não sabemos se este equipamento já existira cerca de 150 anos antes, quando reinava em Portugal o fundador da Dinastia - D. Afonso Henriques, o grande responsável pela conquista de Lisboa. Se o mesmo já existisse, seria tentador alegar que alguns dos 164 navios que compunham a frota cruzada teriam ali parado até porque na região entre Porto e Aveiro, os portos existentes contavam-se pelos dedos das mãos. 
No entanto, nada disto prova-nos que foram os cruzados, mesmo que estivessem estacionados em Esmoriz (possivelmente uma modesta aldeia piscatória naqueles tempos), que baptizaram um dos lugares a nascente como seria o caso do sítio da Boavista. E aqui entramos nos argumentos que tornam esta história, não como um dado científico adquirido, mas antes como um mito ou uma lenda. 
Apesar de podermos supor uma paragem dos cruzados na Barrinha e nalguns pontos de Esmoriz e Paramos, a verdade é que não há nenhum documento concreto da época que confirme expressamente essa teoria. 
Ao contrário do que é indicado na lenda em cima, a Capela da Penha não existia antes da chegada dos cruzados como também o seu culto não seria sequer fundado por estes. A inscrição cronológica que erradamente foi efectuada por um escriba/artista seiscentista, dado que, conforme Aires de Amorim afirma na sua monografia "Esmoriz e a sua História", o templo não foi restaurado em 1345, mas sim em 1645 pelo abade João de Pinho. De qualquer das formas, as duas datas são bem posteriores à expedição do ano de 1147 que permitirá a conquista de Lisboa. Além disso, o culto de Nossa Senhora da Penha de França não teve origens propriamente em França, mas sim numa serra designada "Penha de França", então situada na província de Salamanca (Espanha), onde o monge Simão Vela encontrou uma imagem antiga de Nossa Senhora, após uma visão milagrosa que teve. Além disso, é importante relatar que este culto propriamente dito nasce apenas a partir do século XV.
Em Esmoriz, o culto de Nossa Senhora da Penha remonta aos inícios do século XVII, embora sob a forma original de ermida. Assim sendo, é muito posterior aos tempos da Segunda Cruzada e da Conquista de Lisboa.
De acordo com o Padre Aires de Amorim, a primeira referência documental ao lugar da Boavista em Esmoriz surge apenas em 1677. É provável que as origens deste nome sejam já anteriores, contudo é improvável que remontem ao já longínquo século XII. 
Apesar de se achar envolta de lendas, o lugar da Boavista congrega sim a ilustre capela de Nossa Senhora da Penha (com o seu belo altar de talha dourada e cujo culto remonta então ao século XVII) e ainda um magnífico miradouro que permite contemplar a beleza natural e genuína do mar e até da Barrinha de Esmoriz.





Imagem nº  1 - A Capela da Penha de França no lugar da Boavista em Esmoriz.
Direitos da Imagem: Nossa autoria





Imagem nº 2 - Exemplo de um porto medieval sito num lago.





Imagem nº 3 - O cerco de Lisboa (1147) com a presença das forças portuguesas e cruzados estrangeiros.
Direitos da Imagem: Roque Gameiro (autor da pintura)

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