Auschwitz foi libertado há 70 anos pelas tropas soviéticas
Ou a casa dos mortos. Também podia ser. Um milhão e meio. De gente, homens, mulheres, crianças, velhos, que quando morreram já tinham morrido. E dos outros, os que quando sobreviveram já estavam mortos. Auschwitz sentenciou-os ao extermínio pelo «crime» de serem judeus ou ciganos ou comunistas ou homossexuais ou qualquer outra identidade que não estivesse de acordo com as especificações do Terceiro Reich. Em 1940, a casa dos mortos abriu os portões e por cinco anos, nas barbas do mundo, reduziu homens a cinzas. Hoje continua lá, museu do que não pode ser esquecido. Mas, e é isso o mais terrível, do que não pode ser lembrado. Porque não se entende, não se esteve lá, não se viveu, não se morreu.
«Isto é o Inferno. Hoje nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um lugar grande e vazio, e nós cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar já morto», Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, no seu livro testemunho Se isto é um homem.
Um lugar grande e vazio. Em 1939, a ocupação nazi estendia-se à Polónia. E em 1940, de um antigo quartel do exército polaco, na cidade de Oswiecim, a 60 km de Cracóvia, fazia-se o maior e mais terrível campo de concentração do III Reich: Auschwitz, às ordens do comandante Rudolph Höss. No ano seguinte, a três quilómetros, erguia-se Auschwitz II – Birkenau. Campos eleitos por Heinrich Himmler para a «solução final» da questão judia, um eufemismo que traduzido dá extermínio total.
O fim da linha para milhões de judeus de toda a Europa, que aqui chegavam após intermináveis dias de viagem em vagões de mercadorias apinhados, quando não morriam pelo caminho, às balas dos SS, à fome ou à sede. Para muitos um fim da linha imediato. Chegados, despojados de si, seleccionados para a morte no duche de gás. Aos considerados úteis para o trabalho era protelada a sentença. Até ver. Não só judeus. Também ciganos, também prisioneiros de guerra soviéticos, também presos políticos, também outros. As imagens já as vimos, ou reconstituições delas, em filmes, em documentários, as descrições do que era aquilo já as lemos, em livros de história, em testemunhos de quem sobreviveu.
Um lugar grande e vazio. O diabo dono deste inferno tinha requintes. «Arbeit Macht Frei» («O Trabalho Liberta») inscreve-se acima dos portões por onde se entrava e não se saía. A saída era outra. «Aqui entra-se pela porta e sai-se pela chaminé», dizia Mengele, o doutor da morte. A toda a volta os postes, restos das redes electrificadas, garantias da fuga impossível ou de uma libertação ainda mais rápida que a prometida pelo trabalho.
Um lugar grande e vazio. Hoje museu. Cinzento, sombrio. À entrada, a história do campo, as fotografias, o antes e o depois, como o daquela rapariga judia de vestido aprimorado e canudos castanhos a posar para o fotógrafo e depois cabeça rapada, pijama de riscas, perfil, frente, oblíqua. O destino escrito ao lado. Como quase todos, a morte. Ao fundo do corredor uma escultura, uma parte de homem, amputada por um indecifrável instrumento.
O museu passa depressa. A visita guiada ao campo também. Uma hora e meia não dá para ver. Se calhar não há nada para ver. Mas dá para olhar, os blocos sucessivos, onde dormiam, onde viviam (viviam?), onde comiam. A visita segue. Descemos umas escadas, às celas onde eram castigados, torturados, mortos. Há um cheiro que agonia, que persiste. Vem de onde? Lá fora o guia desfia a história, as histórias, no intervalo de longos silêncios. Agora são aquelas janelas lá em cima, escondidas atrás de tábuas, era ali que Mengele fazia as suas experiências científicas, com cobaias humanas, era ali que tornava estéreis as mulheres judias. Agora é o muro das execuções, um tiro na nuca — impossível olhar nos olhos de quem vai morrer às nossas mãos? — e acabou. Não era a pior das mortes. Havia a forca. Onde tantos morreram. E onde morreu Rudolph Höss, o comandante do campo, de olhos postos na sua obra. Teve tempo de se arrepender, diz o guia. Outros não. Havia as câmaras de gás. Entramos, a cena de A Lista de Schindler vem à memória. Mas quase nunca foi assim, em 15 a 20 minutos ia a esperança, a ilusão, e vinha a morte pelo gás Zyklon B. E depois os fornos crematórios, as malditas chaminés. E depois nada.
Um lugar grande e vazio. Mesmo que não existam fantasmas, eles estão aqui. Todos os que aqui morreram, todos os que aqui sobreviveram. Estão no ar, estão no chão, estão nas cinzas, estão no cheiro, estão naqueles montes do que restou deles, hoje atrás de um vidro de museu, para dar a ver, para fazer saber, sentir, doer, lembrar, não esquecer. Há as duas toneladas de cabelos, que não chegaram a ser vendidas — os nazis vendiam os cabelos das suas vítimas à indústria têxtil, a meio marco o quilo. «Business is business. Reciclagem de humanos», observa o guia, numa ironia resignada. As cinzas também. Usadas como fertilizante para a agricultura. E depois há os sapatos, milhares de sapatos, e os óculos, um emaranhado retorcido de óculos, quase uma instalação artística, e os pentes e as escovas de dentes e os mais variados objectos pessoais, um amontoado de penhores das vidas roubadas no momento em que aqui se entrou. E há as malas, tantas malas, com nomes e moradas daqueles a quem pertenceram, muitos riscados e tornados a escrever. A esperança não foi a última a morrer, não pode ter sido, mas estas malas dizem-nos que é verdade, custa muito matá-la.
A visita acaba num filme, da libertação do campo pelos russos, das valas comuns cheias dos cadáveres que não houve tempo de queimar, dos rostos sem expressão, sem um único vestígio de salvação, dos corpos vivos de pele e osso, das crianças cobaias, dos velhos de 30 ou 40 anos. Como foi possível? O mundo sabia e não fez nada, acusava o guia há pouco diante de uma fotografia aérea do campo tirada pelos aliados, muito antes do fim da guerra. O que é que o mundo sabia? Por que não fez nada?
Um lugar grande e vazio. Ainda é assim Auschwitz. Mas agora já se pode pensar. Aliás, nada mais há a fazer senão pensar. Ou talvez não. Talvez, como dizia o filósofo alemão Theodor W. Adorno, após Auschwitz não seja mais possível pensar. Porque pensar é saber que sim, que isto é o homem.
Um artigo da autoria de Catarina Pires
Imagem nº 1 - A libertação de Auschwitz aconteceu há 70 anos com a chegada do exército soviético.