"Todas as grandes lendas são modelos para a conduta humana. Eu definiria um mito como uma história que sobreviveu"
John Boorman
(Cineasta inglês nascido em 1933)
Muitas terras tiveram, ao longo do tempo, as suas próprias lendas. É claro que a maior parte esmagadora destas terá sido inspirada exclusivamente a partir do imaginário popular, enquanto uma minoria poderá conter um pequeno fundo de veracidade, embora deturpado por pormenores adicionados em testemunhos posteriores.
Na Idade Média, época profícua em lendas, superstições e mistérios, não faltariam relatos assombrosos que até nos remeteriam para a presença de monstros e de seres fantasiados que tripulavam mares, florestas, montes e rios. A limitação do conhecimento científico e o elevadíssimo analfabetismo estimulavam facilmente as torrentes de boatos e rumores.
No caso de Esmoriz, perguntarão alguns - terá existido alguma lenda que resistiria até aos dias de hoje? A resposta é afirmativa. Todavia, só desvendamos a presença de apenas um relato mítico, cuja origem cronológica exacta é-nos desconhecida, embora não seja muito antigo visto que faz alusão à célebre emigração de portugueses (esmorizenses) para o Brasil. Ou seja, será certamente posterior aos séculos XV/XVI, pelo que a sua origem não é sequer medieval.
No entanto, julgamos que outras lendas terão sido também difundidas na nossa terra (cuja existência é milenar - as primeiras referências sobre Esmoriz terão surgido algures entre os séculos IX e XI), mas que o tempo se encarregou de as fazer diluir no vazio da amnésia universal.
A única lenda que sobreviveu está, de certa forma, associada ao mito da Bicha das Sete Cabeças de Silvalde. Mais uma vez, o Padre Aires de Amorim registou a história popular que terá conhecido um grande eco entre os esmorizenses durante um determinado ciclo temporal moderno ou contemporâneo.
A Lenda da Bicha das Sete Cabeças
(Versão própria de Esmoriz, e diferente face à de Silvalde)
"Andavam dois irmãos a ceifar trigo, na cortinha do Carvalhal, na Casela (lugar de Esmoriz), senão quando lhes apareceu uma bicha. Logo a irmã, aterrorizada, pediu ao irmão que a matasse. «Deixa ir a bichinha» lhe respondeu este, enquanto o réptil se escondia no valo.
Passaram-se anos, e o ceifeiro emigrou para o Brasil. Um dia, roído de saudades, resolveu regressar ao Continente, tendo o navio sido capturado pelos piratas mouros e consequentemente aprisionado com os companheiros.
Na sua vida de refém, algo de extraordinário agora ia notando: todos os dias encontrava a cama feita e a mesa posta, o que não acontecia com os companheiros. Certa ocasião, tendo encontrado uma mulher a fazer-lhe tais serviços, perguntou-lhe por quê tais desvelos. E logo ouviu «mereces isto e muito mais, porque me poupaste a vida... Lembras-te daquele dia em que a tua irmã te chamou para me matares e disseste que deixasse ir a bichinha para o valo? Pois eu era aquela bichinha... Descansa, em breve ficarás em terra!». Deu-lhe, em seguida, um cinto, um micho (pão de trigo), com quatro perninhas e uma buzina, para tudo fazer entrega à Bicha das Sete Cabeças em Silvalde.
Quando voltou a Portugal, a irmã, curiosa e cobiçosa, roeu um pouco do micho. A encomenda não demorou a ser entregue à Bicha, em Silvalde. Logo esta, que era uma mulher, tocou a buzina, o micho transformou-se num burro de três patas, que cavalgou, e o cinto mandou que o desse à irmã. O emigrante esmorizense, cheio de medo pelo que tinha presenciado, enleou-o num carvalho, que se desenraiou e desapareceu" (AMORIM, Aires de - Esmoriz e a sua História, p. 558-559).
Imagem nº 1 - A Lenda da Bicha das Sete Cabeças de Silvalde inspirou o povo de Esmoriz a recriar um mito associado.
O cineasta inglês John Boorman (radicado na Irlanda) efectivamente tem toda a razão quando salienta que, muitas vezes, as lendas nos transmitem virtudes e procedimentos morais que devem ser tidos em conta pela sociedade. Neste caso em concreto, a tolerância manifestada por uma personagem, traduzida na intenção de poupar a vida de um animal indefeso, isto é, de um réptil, foi determinante para uma recompensa no futuro, embora que a história assuma proporções fantasiosas. Ao que parece, a alma do réptil iria culminar, por reencarnação ou metamorfose mágica, numa mulher que cuidaria e resgataria o emigrante esmorizense, quando este fora mais tarde capturado por piratas mouros, na altura em que regressava à pátria, depois de ter deixado o Brasil onde havia conquistado alguma fortuna.
As lendas também podem espelhar as tradições e os costumes históricos da nossa terra. Por exemplo, neste caso, as referências ao inevitável mar, à agricultura (e ao cultivo do trigo) que outrora preenchia os campos, à emigração de filhos da nossa terra para a América do Sul e aos ataques da pirataria moura encontram eco na nossa história local, embora que disseminados entre outros dados irrealistas da lenda que foram naturalmente fruto da invenção popular. Além disso, a missão atribuída pela "mulher metamorfoseada" ao emigrante esmorizense poderá encontrar algum paralelo com as missões e com os contributos que este, muitas vezes, acrescentava à sua terra de origem. Por exemplo, Alexandre Sá Pinto, natural de Gondesende e emigrante no Brasil e (sobretudo) na Argentina nos séculos XIX-XX (viveu entre 1833 e 1926), beneficiou através do seu testamento muitas instituições e entidades presentes em Esmoriz (por exemplo: deixou dinheiro à Igreja Matriz e à Capela de Gondesende) e no concelho de Ovar (caso da Misericórdia aí sita). Também conhecemos o caso da Nova Capela do Senhor dos Aflitos (denominada na gíria popular como Nova Capela da Praia) que foi erguida em 1948, contando com um forte patrocínio dos emigrantes esmorizenses do Brasil. A ermida de Santa Clara, no lugar da Vinha, também albergara uma estatueta da santa, oferecia pelo emigrante esmorizense António Marques da Silva que havia regressado do Brasil e que faria tal promessa após ter escapado dos perigos do mar. Também encontramos notícia de cidadãos esmorizenses radicados no Pará que, em 1916, ofereceram 120$00 para um plano de reabilitação da antiga Capela do Nosso Senhor das Febres em Gondesende.
Em jeito de balanço final, uma lenda não tem de ser necessariamente um conteúdo sem qualquer pertinência ou validade científica. Pelo contrário, se for devidamente esmiuçada, poderá conceder-nos directrizes morais e até informações sobre como o povo pensava na altura, além de espelhar algumas das suas tradições.
Imagem nº 2 - Outrora Esmoriz era uma terra coberta com uma larga mancha florestal, onde muitos julgavam existir seres mitológicos ou forças poderosas ocultas.
Foto da autoria de Rubim Almeida junto à Barrinha de Esmoriz