Nas ruas citadinas de Esmoriz, existia uma senhora, já com os seus 68 anos de idade, portadora dum cabelo liso esbranquiçado e uma face recheada de rugas, isto para além da sua pequena altura. Era natural de Cortegaça, aonde fora peixeira e, mais tarde, uma costureira remediada. O seu marido destacou-se inicialmente enquanto cordoeiro, mas perderia a sua vida, com uns lamentáveis 52 anos perante as ondas de fúria deste mar bravo que na zona não dá tréguas aos pescadores e moradores costeiros. O seu único filho também sofrera uma morte trágica aos 32 anos, vítima dum atropelamento ferroviário, quando atravessava fatalmente a passadeira da estação de Espinho.
Dona Josefina estava só na vida, era reformada, vendera a casa que possuía na vila vizinha, e estabeleceu-se na zona dos Castanheiros em Esmoriz, numa propriedade minimamente preservada que lhe seria transmitida hereditariamente, pois pertencera antigamente ao seu avô paterno. Mesmo assim, ainda convivia com algumas amigas no mercado semanal que se desenrolava aos Sábados nas proximidades daquela imponente Igreja Matriz. Para além disso, tomava cafés e tinha sempre o cuidado de ler a actualidade contida nos jornais e nas revistas.
Aí conheceu Estevão, um espinhense de 56 anos, que trabalhava já há muito tempo nos Correios da localidade. De cara gorda, e uns olhos esverdeados, naturalmente meigos, este indivíduo, de alta estatura, pautava-se pela serenidade e demonstrava optimismo face ao futuro. Célebres eram as civilizadas desavenças entre os dois num dos cafés da cidade junto à Estrada Nacional.
Josefina era antagonicamente pessimista e não hesitava em colocar defeitos a tudo. O seu passado vestiria a sua visão de cores negras e cinzentas.
- Ó Estevão, não te consigo perceber quando dizes que muito se tem feito ultimamente nesta cidade! Josefina colocava a temática em discussão, e Estevão respondia:
- Senhora Josefina, não acha que o pagamento de dívidas, a concretização duma Universidade Sénior e a fundação dum gabinete psicossocial são iniciativas fundamentais numa cidade como a nossa?
Mas Josefina, habitualmente vestida com roupas sujas de terra (costumava trabalhar um pouco na hortinha que tinha na sua propriedade), tinha resposta para tudo:
- Eu referia-me concretamente aos buracos das ruas. Qualquer dia, ainda sou engolida por uma cratera e depois têm que me salvar mediante escadas de auxílio. Mas tu, ó Estevão, para falares assim, é porque já tens um tacho! Faz bom proveito.
Quando a conversa chegava a este ponto, Estevão voltava a desviar os olhares e concentrava-se apenas na leitura do jornal ou da revista que costumava estar mesmo à sua frente. Não queria pois alimentar uma discussão inútil que não os levaria a lado nenhum.
Josefina lançava ainda os seus habituais escárnios contra a Troika e as políticas de austeridade do seu país que nos conduziriam cada vez mais à miséria e perda de direitos. Não admitia ela que lhe cortassem na pensão a que tinha direito, após tantos anos de duros esforços.
Uma vez, em pleno restaurante na zona da Praia de Esmoriz, jurou que se, fosse ela, um dia, a Presidente da Junta de Freguesia de Esmoriz ou da Câmara Municipal de Ovar, mandaria tapar todos os buracos das redes viárias, mandaria construir um lar com preços acessíveis para os mais idosos, ordenaria a criação de mais um parque para jovens e velhos, e reabilitaria as moradias humildes dos pescadores. Nesse momento, toda a vareirada lhe dedicou uma chuva de aplausos. Até Napoleão sentiria inveja do entusiasmo que ela conseguiu implementar na plateia que se deixava cativar. Ó Joana de Arc que tiveste de esperar quase 600 anos para observar uma nova líder guerreira ao teu nível, capaz de despoletar interesses mútuos naqueles novos seguidores que a escutavam quase religiosamente!
Claro que Josefina reivindicava algum protagonismo nas discussões, mas é certo que levava, no fundo, uma vida humilde. Por vezes, compadecia-se dos mais carenciados e lhes entregava esmolas e até alimentos. Apesar do negativismo da sua visão, não recusava conversa a ninguém. Descia as ruas de Esmoriz em direcção à Praia para contemplar nostalgicamente o mar que nunca devolvera o corpo do seu marido. Como estava vestida muitas vezes com o seu avental humilde, passava despercebida e muitos a olhavam como uma desgraçada a vaguear pela cidade. Havia quem, sobretudo os mais novos, fizesse troça dela.
Todavia, num dia tudo iria mudar repentinamente!
Estávamos numa sexta-feira, dia 13 de Janeiro, as tradicionais superstições sinalizavam uma elevada possibilidade de amaldiçoamento, mas Josefina, decidiu arriscar novamente a sua sorte na lotaria, depois de algumas tentativas falhadas, em que a própria barafustava com a televisão, ousando colocar em causa a transparência do sorteio, mas tudo não era mais do que o descarregamento da sua frustração que todos nós acabamos por sentir em variadas alturas difíceis da vida. Mas naquele dia, tudo estava reservado a ser diferente. Mal teve conhecimento de que os números coincidiam com aqueles em que apostou, a senhora pulou de alegria, embora se tenha aleijado no joelho que já não aguentaria com tanto furor e excitação física. Josefina acabava de ganhar uma soma avultada. Os vizinhos falavam em 25 milhões de euros, 5 milhões de contos! Acabava de se tornar na senhora mais rica de Esmoriz e quiçá de todo o Município de Ovar. Muitos aguardavam que esta senhora pudesse dispensar algum dinheiro para ajudar a comunidade, já que o seu interesse até então revestia-se de honestidade e sinceridade.
Josefina viu o seu prestígio a aumentar, e por isso, adquire roupas da última moda, utiliza anéis e brincos cintilantes, usufrui agora dum chapéu famoso do Panamá. Agora ela não caminha, desfila pois, atrai os interesses de homens da sua idade, mas outros, mais jovens, na casa dos 20 e 30 anos, já lhe piscam o olho, mas talvez não o fizessem por atracção à sua compleição física. Esta senhora, agora nobilitada de tal forma ao ponto de lhe chamarem "Rainha de Esmoriz", desfizera-se das suas roupas recheadas de nódoas e já muito encurrilhadas que foram atiradas, sem piedade, para os contentores de lixo. Desterrou a sua horta, e mandou aí implantar uma piscina nova para que a pudesse utilizar umas poucas vezes no Verão. Comentam ainda os vizinhos que ela terá comprado um carro de boa gama, mesmo que nunca viesse a conduzi-lo! Para além disso, já desfrutou de voos rumo a destinos exóticos: Maldivas, Seychelles, Hawai, Canárias, República Dominicana... Era igualmente convidada para as festas das elites. Nalgumas, até lhe pagavam bem a sua entrada. Os tempos árduos, em que fora humilde e lutadora, já lá iam! Esquecera-se das antigas amigas que sempre a ajudaram a levantar o seu moral, quando as coisas não lhe saíam bem, até ignorava agora o próprio Estevão, por considerá-lo duma classe inferior. As esmolas outrora para os mais necessitados passaram a ser utilizadas para aceder a todo de excentricidades individualistas.
Em breve, seria ainda convidada para uma lista que venceria as eleições autárquicas na terra. Com o cargo de tesoureira, e depois de secretária, durante 2 mandatos distintos que totalizavam 8 anos, demonstrava o seu novo ego nas reuniões e não hesitava em colocar defeitos nos demais (as actas referem que chegou a chamar cabeça de baleia a um elemento da oposição por ter um aparato superior acima do pescoço), mas é certo que já, com mais de 75 anos, o coração obrigava-a a moderar os seus caprichos. Abandonou pois o cargo, e as ruas mais esburacadas, continuavam por solucionar, os pescadores sofriam cada vez mais com o avanço marítimo, o parque que fora construído era demasiado pequeno e mal localizado, dizendo os mais supersticiosos que lá andariam fantasmas. Este fora o seu legado!
Josefina fora assim até aos 82 anos, altura em que falece de ataque cardíaco, quando por engano, recebe uma telefonema anónimo a ameaçá-la de morte. Pelos vistos, o responsável pela ameaça enganou-se a marcar o número, e pensando que estava a falar com outra mulher, que não a própria Josefina, terá acabado por gerar imediatamente uma reacção interior imprevista de Josefina que morrera acidentalmente. O culpado nunca fora apanhado, pois a polícia sempre suspeitara que o ataque cardíaco tivesse sido de ordem natural.
Os 16 milhões de euros que ainda restavam foram parar às contas do Estado. É claro que ainda houve falsos herdeiros que desejaram reclamar estas verbas, mas em vão...
Afinal, o famoso dia 13 de Janeiro, sexta-feira, não fora um dia de sorte para Josefina... O seu carácter deteriorou-se, e a prova disso, é que ninguém compareceu no funeral, excepto o padre, o sacristão e o coveiro que garantiriam o cumprimento formal do enterro.
Retrato meramente exemplificativo duma Velha Rica.
Retirada de: http://freaks-arte9.blogspot.pt/2010_07_01_archive.html, (Desenho de Sara Santos).
Nota: Esta é uma das surpresas do nosso blog. Daqui em diante, procuraremos redigir contos. O próximo será de Natal e será publicado no dia 25 de Dezembro. Os nomes apresentados são puramente ficcionais e o enredo é só fruto da minha imaginação. Nunca tencionarei ofender alguém em concreto.
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