As Jornadas de Património de Ovar também passaram por Esmoriz, mais concretamente, pelo auditório da Junta de Freguesia nesta sexta-feira, entre as 18 e as 20 horas. Neste caso em concreto, a iniciativa promovida pela Câmara Municipal de Ovar (contou igualmente com a parceria da Junta de Freguesia de Esmoriz) assentava na realização duma conferência e duma exposição sobre a Necrópole do Chão do Grilo sita em Gondesende (Esmoriz).
Os resultados verificados nesta apresentação foram, sem dúvida, interessantes e até surpreendentes. No entanto, lamentamos, desde já, a reduzida assistência que se fez notar no auditório (na plateia, estiveram apenas cerca de 30 pessoas). Por isso, é nosso dever detalhar aqui os resultados que foram divulgados e debatidos pelos especialistas na conferência, de modo a que os nossos leitores tenham conhecimento das conclusões extraídas em torno daquele sítio arqueológico. Também optamos por fotografar a exposição para que assim fique perpetuada nas nossas memórias.
A conferência juntou três especialistas de monta - Gabriel Rocha Pereira (arqueólogo natural de Esmoriz e responsável pela última sondagem na necrópole - iniciativa que começou em Maio de 2015), António Huet B. Gonçalves (assessor principal aposentado do Museu de História Natural) e Gertrudes Branco (responsável da área de arqueologia da Direcção Regional de Cultura do Centro).
António França, Técnico Superior e Historiador da Câmara Municipal de Ovar, e António Bebiano, Presidente da Junta de Freguesia de Esmoriz, abriram a sessão, agradecendo a presença dos convidados e congratulando-se pelo regresso dos trabalhos arqueológicos na necrópole, algo que já não se sucedia há muitas décadas.
O primeiro palestrante a tomar o uso da palavra foi António Huet que teve o privilégio de trabalhar e divulgar o espólio de Rui de Serpa Pinto. Não será pois de estranhar que a sua apresentação nos tivesse facultado então dados sobre a vida deste prodigioso intelectual que infelizmente acabou por ter uma vida curta (1908-1933; faleceu com 25 anos de idade). Sob o tema introdutório "Notas Arqueológicas de Rui de Serpa Pinto", o orador teve a oportunidade de recordar este magnífico aluno portuense que alcançou uma licenciatura em Matemática (pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto) e outra em Engenharia Civil (pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto). De facto, este jovem demonstrava ser um polímata, isto é, alguém que possuía um vasto leque de conhecimentos sobre diversas áreas do saber. Neste âmbito, Serpa Pinto sempre evidenciara um enorme interesse pela pré-história, proto-história, arqueologia medieval, numismática, epigrafia, paleontologia, mineralogia, geologia, bibliografia... Devido à sua "veia de arqueólogo", ele seria incumbido por Mendes Correia, Director do Instituto de Antropologia - FCUP, com a finalidade de averiguar, no ano de 1931, a descoberta acidental duma suposta necrópole em Esmoriz, Este prestigiado erudito deslocou-se assim à referida estação por duas vezes, tendo tomado várias notas ao longo das escavações. Esses apontamentos viriam a ser publicados recentemente por António Huet na Revista Dunas em 2006, constituindo assim uma fonte original ou primária para quem deseja saber um pouco mais sobre a história destes enterramentos mais antigos. Durante a análise do seu testemunho, António Huet elogiou a perspicácia e a minuciosidade evidenciadas por Serpa Pinto que traçou, com exactidão, a localização e os contornos da necrópole, além de descrever as configurações e posições das sepulturas detectadas. Também se tiraram fotografias (naturalmente a preto e branco) sobre o local, o que ainda enriqueceu mais a experiência de investigação. Sabemos ainda que este intelectual escavava, "quadriculando" o terreno.
Nas suas notas de cariz arqueológico sobre a Necrópole do Chão de Grilo, Rui de Serpa Pinto afirma que foram achadas 24 sepulturas (embora se julgue que o número total de enterramentos possa ser bem superior) que remontariam talvez à época bárbara tardia isto é, aos séculos VI-VII, coincidido assim com a época dos suevos e visigodos. Esta datação cronológica foi motivada pelo facto de se tratarem de enterramentos pobres de inumação, estando bem presentes as tegulae e as imbrices. Não se encontraram vasos ou objectos de maior valor que justificassem outra classificação cronológica.
A morte prematura de Rui de Serpa Pinto em 1933 (vítima de septicémia tifóide) constituiu talvez a maior perda científica da Arqueologia Portuguesa na primeira metade do século XX. Naturalmente, a sua partida precoce fez com que a Necrópole voltasse a cair rapidamente no esquecimento, situação que infelizmente se arrastou nas próximas oito décadas.
A segunda intervenção, intitulada "(Re)Visitar o Chão do Grilo", pertenceu a Gabriel Rocha Pereira, o homem que teve o privilégio de liderar a sondagem realizada neste ano de 2015 na mencionada necrópole para assim efectuar as comparações necessárias em relação às conclusões evidenciadas por Rui de Serpa Pinto em 1931. O arqueólogo afirma que foram encontrados diversos fragmentos de cerâmica, material de construção e objectos líticos. De acordo com a sua balização cronológica, a Necrópole do Chão de Grilo remontaria a um período que se estenderia desde o século IV (Antiguidade Tardia) até ao século VIII (Alta Idade Média), confirmando de certa forma a datação já avançada por Rui de Serpa Pinto que não hesitou em referir-se à "necrópole bárbara" nos seus registos sobre aquele espaço histórico. No decurso da sua recente análise, o arqueólogo natural de Esmoriz mencionou a existência de sepulturas em caixa, sepulturas em murete de xisto e sepulturas em negativo no solo natural. A necrópole pode ter sido utilizada durante 300 anos, o que poderia remeter-nos para uma tradição de enterramentos já enraizada no referido local.
No entanto, há novidades, ou melhor, surpresas que foram reveladas, em primeira mão, por Gabriel Rocha Pereira. De acordo com a sua sondagem no local, o arqueólogo acredita que a presença daquela necrópole (cemitério antigo) pressupunha a existência dum povoado muito próximo. Segundo a "natureza" de alguns objectos detectados na área envolvente, é possível que o suposto povoado ficasse situado entre 50 a 100 metros a sul da citada necrópole. Caso os indícios se confirmem, o cemitério não ocuparia uma posição central na povoação, situando-se antes nas imediações ou nas proximidades da mesma.
E que povoação seria esta? Sabemos que um riacho passava pelas imediações e que a Barrinha de Esmoriz naquele tempo era de dimensões mais amplas, contudo não logramos apurar muitos dados sobre as vivências daquela alegada comunidade rural em períodos mais remotos. No entanto, a descoberta intrigante de vestígios arqueológicos inerentes à época da proto-história podem fazer-nos pensar que a povoação, alegadamente estabelecida nas proximidades da necrópole, remontaria à Idade do Ferro e que poderá ter permanecido aí, embora talvez com alguma irregularidade, até à época bárbara. Por outro lado, também é possível que o mencionado lugar arqueológico tivesse sido alvo de duas ocupações distintas e separadas ao longo do tempo (isto é, teríamos uma povoação na Idade do Ferro e outra na Alta Idade Média). A confirmarem-se estes potenciais cenários, estaremos talvez perante o terceiro povoado da Idade do Ferro a ser detectado no litoral da nossa região (os outros dois casos conhecidos registaram-se na Praia da Aguda - Arcozelo/ V. N. Gaia, e em Monte Castro - Anadia/Aveiro). No entanto, alertamos os nossos leitores que estamos somente no campo das suposições e das teorias. Apesar dos excelentes esforços evidenciados por Gabriel Rocha Pereira e pela sua prestável equipa, a verdade é que a escassez de provas concretas não permite, para já, garantir as certezas necessárias, contudo os indícios até então observados não deixam de ser bastante promissores.
Por outras palavras, aquele sítio arqueológico pode albergar uma "mistura" de Idade do Ferro, de Antiguidade Tardia e de Alta Idade Média.
Por fim, Gertrudes Branco, representante da Direcção Regional da Cultura do Alentejo, encerrou o capítulo das palestras com o tema "Leituras e Potencialidades do Património Arqueológico", efectuando um enquadramento geral sobre a importância da arqueologia e da respectiva preservação da cultura. A arqueologia é efectivamente uma "fonte de memória colectiva europeia". A arqueóloga citou ainda as palavras certeiras de Umberto Eco que um dia argumentara que "é impossível pensar o futuro se não nos lembrarmos do passado". Durante o seu discurso, foi defendida a influência da Cultura na salvaguarda patrimonial bem como o seu impacto económico (por exemplo: a sua expressão considerável no PIB) e social (por exemplo, ao zelar pela herança dum povo).
No fim, entabulou-se uma curiosa discussão entre a panóplia de oradores e os respectivos espectadores, nomeadamente em torno da visibilidade e reabilitação futuras do sítio arqueológico. Perguntas que, a nosso ver, não mereceram respostas muito convincentes. Contudo, os estudos deverão prosseguir de forma a que se obtenham mais conhecimentos sobre a real dimensão histórica da Necrópole do Chão de Grilo, um dos patrimónios mais antigos desta região.
Em jeito de balanço final, elogiamos o trabalho desenvolvido por todos os intervenientes, e enaltecemos ainda a originalidade do evento visto que esta parece ter sido a primeira conferência (acompanhada de exposição) realizada sobre aquele espaço histórico.
Exposição sobre a Necrópole do Chão do Grilo (exibida no auditório da JFE):
Notas-extra - A Necrópole do Chão de Grilo situa-se na Rua das Saibreiras (via que segue em direcção a Paramos), nas proximidades da Estrada Nova.
Sobre a biografia de Rui de Serpa Pinto, aconselhamos a ler com a devida atenção a seguinte página electrónica da Universidade do Porto: https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?p_pagina=antigos%20estudantes%20ilustres%20-%20rui%20de%20serpa%20pinto
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