Júlio Dinis foi um dos prosadores mais carismáticos da Literatura Portuguesa. Autor de um número vasto de obras (As Pupilas do Senhor Reitor, Uma Família Inglesa, A Morgadinha dos Canaviais, Serões da Província, Os Fidalgos da Casa Mourisca, etc.), Júlio Dinis não se esqueceria ainda de recordar, nas suas escritas, a nossa Barrinha de Esmoriz. É curiosa a descrição que ele faz sobre a lagoa em meados do século XIX. A realidade deveria ser muito diferente da actual.
Estejamos então atentos a um pequeno excerto do conto do "Canto da Sereia", onde surge então menção àquele espaço ambiental. Vale a pena estar atento aos detalhes.
"Pedro, com o olhar fixo naquele ponto e com os ouvidos atentos à desvanecida harmonia, caminhava ainda, e caminhou sempre, até que um súbito obstáculo lhe tolheu os passos.
Estava defronte da Barrinha.
Quem viajasse há anos por esta parte da província da Beira, deve conhecer, por tradição, senão por experiência, o ponto do litoral que recebeu este nome e onde tantos episódios, uns cómicos e outros trágicos, se sucederam, antes que se construísse a ponte que hoje o viajante, ao percorrer a linha férrea, próximo à estação de Esmoriz, descobre desenhando os seus quatro arcos sobre o fundo esverdeado das aguas do oceano.
A Barrinha é uma estreita abertura cavada pelo mar na costa de areia, interrompida neste ponto, e por a qual ele se precipita, vaga a vaga, em um pequeno golfo que se estende para o norte e para o sul, separando dois extensos cabos de areia fronteiros um ao outro. Nas marés brandas, e quando o mar é pouco agitado, esta abertura é vadeável e os viandantes, aproveitando o refluxo, quase a pé enxuta atravessam, tão incólumes como Moisés atravessou as ondas do mar Vermelho; mas uma hesitação, uma demora pode ser-lhe fatal; se a vaga volta com um pouco mais de violência, envolve o incauto e não poucas vezes o arrasta consigo.
Nas marés vivas, porém, e quando as correntes marítimas são mais fortes, a passagem torna-se impossível, a não ser nos barcos que estacionam no pequeno golfo, e cujas águas nem sempre são plácidas, recebendo a agitação que o oceano, em completa comunicação com elas, lhes transmite.
Ora nesta noite era a Barrinha intransitável; ainda então não existia a ponte que hoje permite fácil passagem em toda a ocasião, e o mar era abundante.
E, contudo, Pedro hesitou ainda, como se tentasse lutar com a natureza no obstáculo que ela lhe oferecia. Mas o canto cessara de todo, a vista já não distinguia no mar o menor vestígio do barco; o alento que animara até ali o pobre vagabundo abandonou-o todo à languidez da sua definhada saúde.
Em algumas das noites sucessivas, tranquilas como esta, voltaram de novo o barco e a cantora. Pedro procurou-os com o mesmo fervor, escutou-a com o mesmo recolhimento, viu-a afastar-se com a mesma ou mais intensa saudade.
E o pobre pescador abatia-se a olhos vistos.
João Cabaça vivia taciturno e oprimido, preso às suas crenças e preconceitos, sentindo o estado de Pedro, a quem de cada vez mais se sentia afeiçoado.
Na opinião do velho, opinião que ele não revelava para não excitar terrores ou causar maiores desgraças, era evidente ser tudo aquilo malefícios da sereia. Ao que já soubera pela comunicação que lhe tinha feito Pedro, acresceu uma nova circunstância, que muito influiu para corroborar esta crença no ânimo do velho pescador.
É que ele também a ouvira, também em uma das últimas noites lhe escutara o canto e não lhe ficou dúvida que' era' de sereia, pois nunca tinha ouvido mulher cantar assim e muito mais no mar e por tais horas da noite"
(Excerto da obra "Inéditos e Exparsos"/ "Canto da Sereia" da autoria de Júlio Dinis)
Imagem nº 1 - A Barrinha de Esmoriz inspirou, desde sempre, prosadores, poetas, pintores e fotógrafos.
Foto da autoria de Magda Moreira
Imagem nº 2 - Júlio Dinis viveu entre os anos de 1839 e 1871, tendo sido um dos escritores mais marcantes do Romantismo Português. Num dos seus contos, chega a referir-se à Barrinha de Esmoriz, cujo excerto apresentamos em cima.
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