Não, não vamos ficar todos bem, e dizer ou escrever #vamosficartodosbem é de uma hipocrisia imensa. É esquecermo-nos daqueles que não estão bem, e daqueles que não irão ficar bem. Desculpem-me estas palavras duras, mas precisamos de falar a verdade em tempos difíceis, e encontrar ao mesmo tempo as palavras certas que saibam falar de esperança. Eu percebo a urgência da mensagem, eu percebo a importância que é ouvir dizer que vamos ficar todos bem, eu percebo sobre o impacto que essa mensagem tem na saúde mental de todos nós. Eu percebo. Acreditem que eu percebo. Mas a verdade é que a mensagem reduz para muito pouco o que se está a passar no mundo e em Portugal. É que não vai ficar tudo bem. Não para os que já morreram, não para os que irão morrer.
(e irão ainda morrer milhares pelo mundo inteiro, e iremos perder vidas inestimáveis, e reduzirmo-nos ao vamos ficar todos bem é esquecermo-nos destes também.)
Não para as famílias que já perderam quem amam, e aquelas que não se podem despedir dos que estão internados em fim de vida. Não para os profissionais de saúde que têm e terão nas mãos um número de vidas que se perderam e que se irão perder, num número que é superior àquele que deveria ser.
Não para os que também ficam em casa em isolamento, porque o impacto que esse acto, que é tão importante, e que é tão urgente que se mantenha hoje em dia, tem na saúde mental de cada um, pode ser enorme e catastrófico.
Não, não vai ficar tudo bem.
Há empresas a fechar, e muitas irão permanecer fechadas quando esta pandemia der tréguas, lançando para a pobreza, e quem sabe para a rua, muitas famílias que dependem desse rendimento. Mais fecharão no futuro, no tempo de recessão que se seguir a tudo isto.
Aqueles que trabalham em trabalhos precários, e aqueles sem contratos de trabalho, foram, são e serão despedidos sem apoios sociais, e esta crise está a dar mostras de que a exploração laboral não é assim tão excepção, e o desamparo que chega e chegará aos olhos destas pessoas é de torcer o coração que não sabes como desatar, o teu, nem o deles.
As vítimas de violência doméstica ou de abuso sexual, ficam em casa confinadas com o agressor, num isolamento social que as distancia de um pedido de ajuda. A casa não é um sítio seguro para todos nós, e o risco de violência e agressão escala nos dias como aqueles em que vivemos hoje.
Nos campos sobrelotados de refugiados, onde o espaço é exíguo para tantos milhares, em que o acesso a uma torneira de água é difícil, e a escassez de cuidados de saúde é grande, faz-me tremer por dentro, a mim, e a todos aqueles que têm os olhos posto no mundo, porque se existir um surto de SARS-CoV-2 (mais conhecido pela doença Covid-19) nestes lugares, ou quando existir, porque na realidade trata-se apenas de um quando, e não de um se, iremos perder um número ainda maior de vidas.
Não, não vamos ficar todos bem, mas vou escrever-vos sobre onde reside a esperança para muitos de nós ficarmos bem, para que depois todos estes possam estar ao lado dos que não.
O país mobilizou-se e dá mostras daquilo que somos capazes quando trabalhamos juntos e na mesma direcção. Temos competências em Portugal, e é esta mobilização nacional que caminha de mãos dadas que vai fazer a diferença. O trabalho de investigação tem sido incansável e a indústria nacional mostra a capacidade que tem para responder às faltas que existem na frente de combate. A ciência evidencia a importância de existir e os cientistas juntaram-se.
(e quão boa ciência somos nós capazes de fazer por cá!)
A indústria associou-se aos cientistas e a tecnologia portuguesa que se criou está aí à porta para poder ser utilizada.
O governo regulariza temporariamente os pedidos de autorização de residência que estejam pendentes no SEF dos imigrantes e requerentes de asilo, permitindo, assim, aos mais vulneráveis, nesta altura em que vivemos em plena pandemia, o direito à saúde e os acessos aos serviços públicos e apoios sociais. Numa altura em que é fundamental uma atenção ainda maior aos direitos humanos e às violações que se perpetuam, esta medida é de uma excelência para a defesa da saúde e segurança colectiva. Que outras medidas que eventualmente sejam tomadas, sejam no seguimento desta mesmo.
A sociedade mobilizou-se e os projectos de solidariedade multiplicam-se em movimentos espontâneos, tentando responder na maior proximidade possível aos que não conseguem ter apoio e estão sozinhos. Numa sociedade que caminhava em valores individualistas, conhecer sobre quem faz pelos outros, e ver toda esta esta preocupação, é de voltar a acreditar que afinal também somos pelos outros. Que prolonguemos este olhar atento, enquanto estendemos a mão e relembramo-nos que continuamos juntos.
O incentivo à economia portuguesa circula nas redes sociais, e o apelo ao consumo do que é português tenta também apoiar as empresas em dificuldade e que vêem o seu volume de negócios diminuído. Que reconheçamos que o que é português é bom, de qualidade e de valor, e que mantenhamos essa mesma consciência nos tempos vindouros.
Os profissionais de saúde continuam no terreno todos os dias, e as mostras daquilo que são capazes de fazer por todos, é de fazer chegar as lágrimas aos olhos. Desde a médica que não beija a filha há semanas para a proteger, ou o médico que saiu de casa para que a família fique segura para poder continuar a trabalhar, às vezes em ciclos de noites a ventilar doentes, ou a assegurar que todos os outros doentes não covid-19 têm os cuidados de saúde garantidos, à enfermeira que, apreensiva, vai na mesma em frente quando lhe é dito que os seus cuidados precisam de ser transitados para a unidade de cuidados intensivos, ou ao enfermeiro que mesmo sem ver a família há semanas, guarda uma palavra de ânimo para o próximo, à auxiliar que tem um tempo extra no seu dia para se demorar com o doente que está sozinho numa altura em que as visitas são nenhumas, à empregada da limpeza que guarda um bom dia, todos os dias, com um sorriso nos lábios, porque sabe o que um sorriso tem de bom em dias de enorme apreensão e stress, ao segurança que diz obrigada por tudo doutora, à senhora do refeitório que faz uma piada para nos alegrar o dia, aos colegas que estão ao lado, mesmo aqueles que estão disponíveis do outro lado da linha telefónica para responder a uma dúvida ou a esclarecer o que quer que seja preciso. Às costas que se seguram juntas, porque sozinhos não conseguimos seguir em frente.
A verdade é que as prioridades estão a ser redefinidas, e quando nos mobilizamos unidos, somos capazes daquilo que nem sabíamos ser possível. Somos todos super-heróis sem ser preciso uma capa que nos diga isso mesmo. Somos melhores. Somos uns pelos outros e não importa qual a cor da nossa pele. E é tudo isto, quando somado em conjunto, que faz-me ter esperança hoje, e quando olho para o futuro. É que estamos a dar mostras de que sabemos estar ao lado uns dos outros, e isso começa a ser mais a norma do que a excepção, qualquer que seja o canto do mundo em que vivemos. Não vamos ficar todos bem, mas juntos, isso sim, podemos estar ao lado e ajudar quem não está, nem irá ficar bem. Não vamos ficar todos bem, mas se nos mantivermos de mãos dadas numa união nunca vista, isso sim, permitirá que, talvez todos, ou pelo menos muitos de nós, nos curemos ao lado uns dos outros.
Texto da autoria de Patrícia Caeiro
Escrito a 30 de Março de 2020
Retirado de: https://intervalosdamedicina.wordpress.com/
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